terça-feira, 31 de agosto de 2010

Cartão de crédito é dinheiro!

 jornal Folha de S. Paulo 23/08/2010 - Maria Inês Dolci

O Banco Central está pronto para atuar, novamente, contra os interesses dos consumidores brasileiros. Há forte tendência de que, em uma futura regulamentação do segmento de cartões de crédito, seja permitida a cobrança diferenciada entre cartões, dinheiro e cheque. Ou seja, o BC está inclinado a atender às demandas dos lojistas.

A alegação dos comerciantes é que pagam pelo aluguel das máquinas leitoras e também uma taxa em cada transação. Os valores estariam hipertrofiados e a conta, segundo eles, deveria ser enviada para quem sempre as recebe: nós. Não é justo nem boa prática comercial.

Os lojistas ganharam muito ao aceitar cartões de créditos. E continuam ganhando. A estrutura de crediário era pesada e cara. Nem sempre resolvia, contudo, a ameaça de inadimplência.

As pessoas compravam além de suas possibilidades e não quitavam os carnês em dia.

Cheques sem fundos eram outro fantasma que tirava o sono dos comerciantes. Cheques roubados também.

Outra estrutura pesada tratava disso, com o apoio dos serviços de proteção ao crédito. Mas, em algumas situações, alguma coisa falhava, e o prejuízo era certo.

Até o dinheiro em espécie pode ser problemático, se for falsificado -isso existe, sim- e também em sua armazenagem.

O cartão de crédito tem muitas falhas. O crédito rotativo é proibitivo, nem sempre a dispensa de anuidade é verdadeira -com cobranças embutidas por uso e por não uso.

O cartão de plástico foi adotado pelos brasileiros. Evita que se carregue muito dinheiro em nossas ruas inseguras. Pode ser bloqueado em caso de furto ou roubo. E facilita o controle dos gastos, via fatura mensal.

Além disso, quando há promoções de fabricantes, lojistas e operadoras, contas podem ser pagas em três vezes, em média, sem juros.

A unificação das máquinas leitoras já reduz o custo dos cartões para os comerciantes, pois antes tinham que pagar o aluguel de dois, três ou mais equipamentos.

Resta prosseguir em negociação com as operadoras para reduzir a cobrança das transações.

Nas lojas, contudo, estabeleceu-se a prática de pressionar o cliente para que pague com cheque ou com dinheiro. Prática abusiva e contrária ao artigo 39, inciso X, do Código de Defesa do Consumidor.

Criar embaraços ao pagamento de compras de produtos e de serviços não me parece muito inteligente. Desestimular o uso de cartões de crédito, então, pode se virar contra quem vende.

A regulamentação deveria evoluir em outra direção. Discutir limites de juros no crédito rotativo, assegurar o direito de renegociação de taxas, definir quem responde pela segurança das transações na internet.

Talvez até mediar as taxas cobradas dos lojistas. Diferenciar o que é prática comercial dos abusos e cláusulas leoninas.

Também é fundamental avançar na transparência dos contratos e da educação dos consumidores, a fim de que não percam o controle dos gastos. Especialmente para que não recorram ao crédito rotativo como forma de financiamento, uma das mais caras e impagáveis que existem no mercado.

O uso de cartões para compras na internet também carece de normas específicas, adequadas ao crescimento das compras virtuais. Que só são virtuais por ocorrer na web, mas que têm fraudes bem reais.

O momento é muito bom para isso. A economia está crescendo e as classes emergentes querem mais conforto e mais segurança. Isso se traduz em ir às compras.

Engarrafar esse trânsito com medidas equivocadas só vai atrapalhar a vida de todos. Cobrança diferenciada, ao fim e ao cabo, reduzirá as compras e os lucros de quem produz e de quem vende.

Não creio que o objetivo da regulamentação seja esse. Por pensar somente no lucro imediato, entretanto, os comerciantes podem perder milhões de compradores.

Que o BC, que se omitiu quando as instituições financeiras quiseram solapar o CDC, não erre novamente contra os consumidores.

MARIA INÊS DOLCI , 54, advogada formada pela USP com especialização em business, é especialista em direito do consumidor e coordenadora institucional da ProTeste Associação de Consumidores. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, nesta coluna.

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